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micro contos I.

  • Veronica Machado
  • 11 de nov.
  • 2 min de leitura

P a l i m p s e s t o s

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Dentro de casa, divago sobre as diversas camadas de tinta que revestem paredes, portas e janelas, alguém, um dia viu a primeira mão de tinta. Foi o que o disse, a porta de 95 anos. Olho pra cima, vejo um pedaço dela tentando se soltar, a tinta descola, mas não cai, fica lá pendurada mostrando a fragilidade de sua espessura, não dá para ver o que ficou para trás.


É o descascar que vai revelando as incontáveis camadas de tempo alojadas na textura da matéria original. Lembra que a gente também é assim, temos camadas como uma cebola. A gente também esconde as camadas antigas, mais profundas, mas mostramos aos convidados somente a tinta nova, a que acabou de ser pintada.


Será que ainda é possível ver a cor natural do batente da porta?

Aquela de madeira com seus veios apontando caminhos abertos, poros a expandir-se e tons a se modificarem no tempo. A tinta nova escondeu tudo isso, afinal, quem deseja ver o corpo velho?


Ainda que queiram raspar a tinta velha, restos dela ficam ali entranhada nos buracos, escondida por outras tintas, alterando a cor da madeira original. O que dá para ver é uma massa condensada por muitas camadas de cores colocadas sobre a madeira. Não dá mais para saber a cor original, mesmo escavando, retirando toda química, buscando a camada mais antiga, não adianta, ela já se perdeu no caminho de sua busca.


Tal qual a subjetividade, as camadas vividas vão criando novas assemblages, como soma de experiências que devem ser preservadas. Impressão de inúmeras películas fotográficas, uma sobre outra.    


É assim que a gente sobrevive ao tempo e o patrimônio também.


Dentre inúmeras sobreposições de tinta reveladas pela prospecção estratigráfica, ao retirar camada por camada de significado sem a pretensão de chegar na primeira, arrisco encontrar àquela que me dará pistas do caminho a seguir.

 

RJ, 06/04/2025

 

 
 
 
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